sábado, 2 de julho de 2011

Fisiopatologia das Doenças Falciformes: Da mutação genética à insuficiência de múltiplos órgões

Por William César Bispo Barreto


A variabilidade clínica encontrada nos pacientes com doença falciforme se deve às alterações ligadas ao defeito molecular ao nível de (1) moléculas e células, (2) tecidos e órgãos e (3) o organismo completo, e aos fatores que influenciam no fenótipo da doença, tais como genótipo da doença, fatores genéticos que influenciam no processo de falcização e hemólise, a resposta individual à doença e fatores ambientais.

As manifestações clínicas da doença falciforme são conseqüência direta da anormalidade molecular representada pela presença da hemoglobina S (HbS), que, diferentemente das hemoglobinas A (HbA) e fetal (HbF), se organizam em longos polímeros de filamentos duplos quando desoxigenadas. Elas então se organizam em feixes e determinam deformações de diversos aspectos das células, sendo a principal delas o aspecto de “foice” ou “falcizado”. Para que ocorra essa falcização, é necessário que a hemácia sofra um retardo na circulação.

A formação de polímeros de HbS dentro das hemácias tem como conseqüência múltiplas alterações da célula que se relacionam com as manifestações clínicas da doença, citando-se aumento da adesão de eritrócitos, granulócitos, monócitos e plaquetas ao endotélio vascular, desencadeando fenômenos inflamatórios crônicos com produção de citocinas e alterações no metabolismo do NO (óxido nítrico). A adesão de eritrócitos pode causar obstrução e hipóxia local, com agravamento da falcização, além de desencadear os processos inflamatórios e alterar processos de coagulação, podendo levar necrose ao tecido.

Nos pacientes com doença falciforme, a vasoconstricção é favorecida por dois mecanismos. O primeiro é a produção exacerbada de endotelina-1 pelas células endoteliais lesadas, um peptídeo pró-inflamatório e potente vasoconstritor de grandes e pequenas artérias e veias. Segundo, a hemólise crônica de hemácias falciformes libera hemoglobina livre a arginase, uma enzima que utiliza o substrato usado pelas células endoteliais para a produção de óxido nítrico, responsável por regular o tônus vascular. A depleção de substrato e o seqüestro de NO causam redução local da substância e a vasoconstricção, que retarda o fluxo sanguíneo e favorece a falcização das hemácias falciformes.

A anemia nos pacientes com doença falciforme é em geral moderada e se deve à menor sobrevida das hemácias. Trata-se, portanto, de anemia hemolítica, com aumento da bilirrubina indireta, hiperplasia eritróide da medula óssea e elevação dos reticulócitos. Sinais e conseqüências da anemia fazem parte da evolução das doenças falciformes, em especial dos homogizotos: retardo da maturação sexual, sobrecarga cardíaca com insuficiência cardíaca na terceira década de vida e contribuição para a gênese das úlceras da perna. A maioria dos pacientes mantém níveis de hemoglobina acima de 7g/dL e não necessitam de transfusões crônicas.

A dor no paciente com doença falciforme pode ser um sintoma agudo ou crônico. No quadro agudo, está associada à isquemia tecidual aguda causada pela vaso-oclusão principalmente em membros inferiores e superiores. Em casos mais graves, a dor em região torácica acompanhada de febre, dispnéia e hipoxemia caracteriza a síndrome torácica aguda, complicação aguda com maior índice de mortalidade na doença falciforme.

A evolução das doenças falciformes é marcada por um amplo espectro de complicações clínicas que atingem a maioria dos órgãos e aparelhos. Algumas dessas complicações não reduzem expectativa de vida do paciente, como úlceras de pernas, retinopatia, necrose óssea e cálculos de vesícula. Outras comprometem diretamente a função de órgãos vitais e estão associadas a risco de vida, incluindo infecções, complicações cardiorrespiratórias, insuficiência renal e acidentes vasculares cerebrais. Quatro mecanismos básicos constituem as bases das lesões teciduais nesses pacientes – anemia, vaso-oclusão com hipóxia, necrose, fibrose e desorganização microvascular, sobrecarga de ferro e asplenia.

O baço tem um papel singular como causa de morte nas doenças falciformes. Na maioria dos pacientes, os numerosos infartos levam à sua fibrose e desaparecimento anatômico, que pode ser precedido de perda da função (asplenia funcional), que tem como principal conseqüência o aumento do risco de infecções graves que produzem meningites e septicemias graves. No entanto, o baço, quando presente, pode causar complicação aguda muito grave: a crise de seqüestro esplênico, caracterizado por retenção de grande volume de hemácias no prazo de algumas horas, causando queda brusca da hemoglobina circulante.

A elevada concentração de HbS é essencial para que a polimerização da HbS se inicies e propague rapidamente, provocando falcização e os fenômenos celulares que desencadeiam as lesões tissulares. Por isso, as elevações da HbF, em detrimento de menor circulação de HbS, têm um papel fundamental na modulação do quadro das doenças falciformes, uma vez que a HbF não interage com as moléculas de HbS. A busca de medicamentos que estimulem a produção de HbF pós-natal levou à descoberta da hidroxiuréia, que além de elevar a concentração sanguínea de HbF, diminui produção de fatores pró-inflamatórios.

Outros fatores que influem na gravidade da doença incluem as variações genéticas, em que o haplótipo Senegal, raro no Brasil, está associado com maior produção de HbF, e os fatores ambientais, tais como acesso à saúde, saneamento básico e água de boa qualidade.




Referência:
Zago, Marco Antônio; Pinto, Ana Cristina Silva. Fisiopatologia das doenças falciformes: da mutação genética à insuficiência de múltiplos órgãos. Revista brasileira de hematologia e hemoterapia: 2007;29(3): 207-214.

Nenhum comentário:

Postar um comentário